sábado, 27 de junho de 2009

"Nos idos de 66, meu amigo Nelson Lins de Barros me chamou para uma atividade muito comum na época:- Quer ser júri do Festival do Aplicação?
Grande festival de música estudantil, o do Colégio de Aplicação, no Rio de Janeiro, costumava sempre mostrar coisas boas em proporção bem maior que seus similares. Aceitei no ato:- Vamos lá!Minha intuição musical, mais uma vez, estava certa. No festival destacou-se um grupo vocal de nível muito superior aos demais concorrentes, o MomentoQuatro. Depois, nos camarins (quer dizer, nas salas de aula do Aplicação reservadas para este fim...) fiz amizade instantânea com seus componentes, pouco mais novos que eu: dois futuros Boca Livre ( David Tygel e Maurício Maestro), Ricardo Villas e Zé Rodrix.

Eles tiveram suas vidas trançadas com a minha em diversas ocasiões: David dividiu comigo um quartinho metido a suíte no cariocamente mítico Solar da Fossa, uma sede de fazenda do século 18 que – acreditem – foi dividido em centenas de quitinetes e virou muquifo habitacional de todo artista que merecesse esse nome no Rio dos anos 60, para acabar lamentavelmente soterrado sob o abominável Shopping Rio-Sul, ao invés de ter sido justamente tombado como Patrimônio Mundial pela Unesco; Ricardo Villas foi meu cunhado e é tio de dois de meus filhos; Maurício Maestro arranjou e gravou diversas músicas minhas; e Zé Rodrix... bem... Zé é parte integrante da minha história de vida.

Foi Zé, com sua dinâmica extra-sensorial, que me empurrou definitivamente pro poço da música. Tornamo-nos parceiros e amigos inseparáveis no final da década de 60. Nossa interação musical era quase metafísica: eu ia pra casa dele, um apezinho quarto e sala na Prudente de Morais e passávamos dias e noites compondo todo tipo e espécie de música, das geniais às ridículas: jingles, sátiras, sinfonias, tudo isso saía das máquinas de compor que éramos. Quando eu desanimava, Zé me animava, acenando com um futuro melhor para além da censura oficial e do atraso crônico de contas a pagar que então sofríamos. Como se tudo isso não bastasse, lá se foi meu primeiro casamento pras cucuias... E aí apareceu na nossa vida de dupla um outro apê histórico pra nós: o apartamento 1 (era assim antigamente...) da rua Alberto de Campos, 111, Ipanema, Rio, Centro do Universo. Lá moravam nosso amigo Guttemberg Guarabyra e os jornalistas José Trajano e Toninho Neves, que me albergaram naquela hora difícil. E para lá - com o nascimento de Marya Rodrix que não conseguia dormir com nossa algazarra – mudou-se nosso ensaio de dupla, que logo virou trio, com a adesão de Guarabyra.

Pra resumir, caímos na estrada e estouramos no Brasil inteiro com dois discos, “Passado, Presente e Futuro” e “Terra”. Como sempre e eternamente acontecerá com 99% dos jovens grupos de todos os tempos, o sucesso acabou deteriorando nossa relação, No começo de 74, entre recriminações e ranger de dentes, nos separamos. Zé foi ser solo e eu e Guarabyra, que também partimos a princípio pro solo, acabamos por seguir em dupla.Esse ressentimento idiota durou até a dupla Sá & Guarabyra comemorar dez anos de carreira, em 82, quando – nós e ele mais amadurecidos – chamamos o Zé para uma participação especial num memorável show em São Paulo. E dali, entre presenças e ausências, seguimos nos falando de vez em quando até 93, quando o convocamos de novo para arranjar e colaborar no vocal em duas músicas do CD “Sá & Guarabyra – Antenas”. O namoro – eh, eh! - foi longo: só em 2001 nos “casamos” de novo, reunindo o trio para uma apresentação no Rock In Rio III que virou CD, DVD e fez com que afinal nos jurássemos juntos para sempre de novo.

Mas o destino é caçador, e neste 22 de maio de 2009 aconteceu o impensável, o inimaginável, o imprevisível: Zé morreu. Meu espanto e sofrimento por esse fato não se devem somente à dor da perda de um amigo de mais de quarenta anos, o que já não é mole, mas também ao fato de que eu achava que o Zé não ia morrer nunca. Como pode morrer uma pessoa tão viva, tão ativa, tão irrefreável, que chegava a nos afligir com sua permanente atividade? Zé era um polvo, com tentáculos que se esticavam para alcançar o máximo possível de atividade humana que pudessem conseguir. E, de repente, o nada. Se até ele morreu, então todos nós somos realmente mortais. Pode?

Infelizmente pode.Nestes últimos oito anos de re-união fomos brindados com tudo o que a vida pode oferecer de melhor e pior para dois amigos: brigamos, gritamos, nos reconciliamos, nos estranhamos, nos atraímos, nos repelimos, nos abraçamos, quase nos batemos, nos beijamos... Entre nós dois havia uma perpétua competição. Mas ao mesmo tempo nos recusávamos a deixar que um de nós ficasse muito atrás nessa corrida maluca. A mão amiga de um estava sempre à disposição do outro. Porque, como sabiamente me falou um dia Tavito, nosso irmão em comum: “amigos de quarenta anos não erram: só se enganam...”.Então, fico aqui me lembrando dos dedos curtos do Zé no teclado – eu sempre ficava imaginando como ele conseguia alcançar uma oitava inteira! - e da sua maneira de falar sempre olhando para cima, o que fazia com que ele parecesse mais alto do que realmente era... Dos seus passos apressados, da sua regência nada técnica, mas sempre empolgada e contagiante, dos seus trejeitos e maneiras, das suas incongruências e certezas tão expostamente humanas, da fragilidade sensível que se escondia atrás de uma segurança montada por anos de cuidadosa construção de objetivos e metas: assim mesmo, como todos nós somos e fazemos, uns mais à vista que os outros.

Uma desgraça dessas, que deixa amigos e parentes com o coração na mão, faz com que nos caia a ficha da fragilidade da vida humana, em contraste com a sensação enganosa de eternidade que sempre nos cerca. Então, resta-me constatar essa fragilidade, dolorosamente exposta por James Taylor no refrão da genial e clássica “Fire and Rain”, que ele compôs para uma amiga inesperadamente falecida. Música essa, aliás, que nós três ouvíamos quase que obsessivamente naquele apê da Alberto de Campos:

I've seen fire and I've seen rain

I've seen sunny days that I thought would never end

I've seen lonely times when I could not find a friend

But I always thought that I'd see you here one more time again

Ou, livremente traduzido:

Já passei por fogo e por chuva,

Já passei por intermináveis dias ensolarados

Já enfrentei tempos solitários,

quando não pude encontrar um amigo sequer...

Mas sempre pensei que poderia te ter aqui comigo

Pelo menos uma vez mais


Boa viagem, meu amigo.

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